Sento-me, espero, olho a parede e passado algum tempo,
vejo-me,
A olhar outra parede, com outro vazio nas mãos, outros
caminhos
Com a poeira ainda assente, mais chaves no bolso, que nunca
cheguei
A saber o que abriam, no quarto ao lado a estudante polaca
parou de gemer,
Agora fala com o seu amigo espanhol, disse uma noite que eu
não a conseguiria
Acompanhar a beber, se calhar agora não teria razão, entre
uma foda e outra,
Escrevo mais um poema, é tão difícil rimar enquanto os
outros vivem,
É ridículo o amor sem carne, sem cheiro a mijo, a cu, é como
acordar
De um sonho e olhar para a mesa de cabeceira e lá em vez de
umas cuecas,
O mesmo livro de sempre, nem uma carta a confirmar que sim,
só um sonho,
Volta a dormir que ainda me apanhas, enquanto sobe a rua com
o namorado barbudo,
Tanta fome e o frigorífico cheio de comida estragada trazida
no fim de semana,
A amiga da polaca queria ver o meu quarto naquela noite em
que acompanhei como pude,
Mas tive vergonha dos desenhos que tinha colados nas
paredes, a minha fome revelada,
Ela com uma sede azul nos olhos de olhos verdes, soubesse eu
ler, mas dá o destino olhos
A quem não sabe ler, ficou a parede a olhar para mim,
amarela, e a estudante polaca
Recomeça naquela celebração universal ao ritmo da cabeça na
parede,
Olho-me do outro lado da parede e digo-me, deixa, se não
tivesses deixado de viver tanto,
Nunca lhe pegarias com a fome nos dentes e o inferno nos
olhos, um anjo do apocalipse,
Deixa, apaga a luz, terás amanhãs em que mal reconhecerás o teu
cheiro na pele da manhã,
Terás olhos que tornarão impossível acreditar que tu o
menino da tua mãe,
Beberás o sumo do agradecimento anónimo e sentirás a alma
tão suja que te sentirás
Maior neste mundo de promessas esterilizadas entre paredes
de quartos pequenos
Em cidades decadentes, deixa, ganharás tão bem o inferno que
até os santos terão inveja.
04.05.2015
Gdansk
João Bosco da Silva